A problemática das mudanças climáticas já é assunto oficial da ONU (Organização das Nações Unidas) desde 1992. A partir de 95, os países-membros passaram a se reunir anualmente na COP (Conferência das Partes), para discutir e atualizar as decisões sobre o clima. Em 2022, a COP27 deliberou categóricas metas globais para mitigar a emissão de GEE (Gases de Efeito Estufa) e substituir as fontes fósseis de energia por renováveis. Então, os países passaram a ampliar suas estratégias, o que culmina na proposta recente do MME (Ministério de Minas e Energia) de aumentar o teor de etanol na gasolina.
Em um artigo da central de conteúdos Mais Agro, publicado em março de 2023, discutimos a relação entre essa transição energética global e a produção de cana-de-açúcar brasileira. O Brasil, como segundo maior produtor de etanol do mundo, tem importante protagonismo na estratégia de evolução mercadológica dos biocombustíveis e é guiado pelo programa de descarbonização RenovaBio, que incentiva mudanças na indústria e no consumo, ampliando a importância da canavicultura.
Como uma introdução ao assunto, recomendamos fortemente a leitura do artigo mencionado no parágrafo anterior, que elucida sobre a posição estratégica do setor sucroenergético para o alcance das metas e as possibilidades que o produtor de cana-de-açúcar tem para se consolidar como um ator dessas mudanças e promover a valorização do seu produto, com benefícios para sua rentabilidade.
Para dar continuidade à discussão, trataremos, neste artigo, do anúncio da proposta de aumentar a porcentagem de álcool na gasolina, como uma estratégia para alcançar a independência energética no país. Além disso, serão abordados o histórico legal e os parâmetros que endossam a relevância – ou não – dessa medida, considerando a agroindústria, a mobilidade urbana e o setor automotivo, que sofrerão impactos diretos, caso ela seja realmente instituída.
Adição de etanol na gasolina: qual a proposta em 2023?
A gasolina brasileira está entre as que contêm maior teor de etanol e, ao que tudo indica, a tendência é que cresça ainda mais. Foi o que anunciou o ministro de Minas e Energia em 28 de abril, na 6ª Safra Mineira de Cana-de-Açúcar. A ideia já vinha sendo discutida nos bastidores por ambientalistas e produtores de biocombustíveis.
A proposta está em fase de análise, e vai ser estudada por um grupo de trabalho dentro do CNPE (Conselho Nacional de Política Energética). Os responsáveis se debruçarão sobre a avaliação dos impactos do aumento da proporção de álcool na gasolina, no que tange à emissão de CO2, à performance dos motores automotivos e aos possíveis benefícios econômicos, pela diminuição da necessidade de importação de gasolina.
Inicialmente, a pretensão é de que a gasolina comum passe a ser comercializada com 30% de etanol anidro em sua composição, com um aumento gradual ao longo dos próximos anos. Com essa alteração, estima-se evitar que 2,8 milhões de toneladas de CO2 sejam emitidas por ano, em virtude da diminuição do consumo da gasolina – combustível fóssil derivado do petróleo altamente poluente, que faz parte das metas definidas para frear as mudanças climáticas.
O teor de etanol na gasolina foi alterado pela última vez em 2015, passando de 25% para 27,5%. A alteração não causou danos nos motores flex brasileiros, mas há polêmica sobre a possibilidade de o novo aumento afetar seu funcionamento. A maior preocupação está para motores à gasolina em veículos importados, que não possuem a tecnologia necessária para rodar com esse alto teor de etanol anidro.
De toda forma, esses três pontos percentuais a mais elevarão a demanda interna pelo biocombustível. Segundo o Jornal da Cana, teriam que ser produzidos pelo menos 1,3 bilhões de litros a mais de etanol anidro por ano, favorecendo a produção de cana-de-açúcar, a agroindústria, a diminuição dos preços ao consumidor final, a qualidade do ar nos grandes centros urbanos, além de, é claro, os dois objetivos principais: a independência e a transição energética.
Histórico e legislação: por que o teor de álcool na gasolina brasileira é um dos maiores do mundo?
Quando o assunto é porcentagem de álcool na gasolina, o Brasil se destaca – não à toa inventamos o motor flex, exatamente para que a motorização se adequasse aos padrões energéticos. Não é arriscado afirmar que o país talvez seja o único a adotar a gasolina E27 (27% etanol), e estamos rumo à E30 – quem diria?!
Nos EUA, a quantidade de etanol anidro na gasolina é de até 10% (em volume), mistura conhecida como gasolina E10, amplamente utilizada nos EUA e compatível com a maioria dos veículos produzidos a partir dos anos 1980. Já na Europa, a maioria dos países europeus permite uma concentração de até 5% (gasolina E5).
Países como Alemanha, França, Bélgica e Finlândia, no entanto, têm adotado misturas com teores mais elevados de etanol, geralmente E10. Além disso, alguns países europeus também oferecem gasolina sem etanol (E0), para atender às necessidades de veículos mais antigos ou de coleção que não são compatíveis com misturas de etanol.
No Brasil, por outro lado, a mistura é obrigatória desde 1931, quando se adotou a gasolina E5. Desde então, o teor de etanol anidro na gasolina só aumenta, em função das políticas energéticas, ambientais, do mercado de combustíveis e da performance das lavouras de cana-de-açúcar. A seguir, mostramos uma linha do tempo da evolução da adição de álcool na gasolina:
- 1966: limite sobe de 5% para 10%, como uma alternativa para superar a crise do petróleo.
- 1975: cria-se o Proalcool (Programa Nacional do Álcool), aumentando o consumo e a produção do biocombustível e dando o primeiro passo para a independência energética, pois diminuiu significativamente as importações de petróleo para produzir gasolina.
- 1985: teor de álcool na gasolina sobe para 22%, como uma medida da Petrobras para incentivar o consumo de álcool e valorizar a produção do setor sucroenergético.
- 1990: limite permitido diminui para 13%, devido à crise na produção de cana-de-açúcar, que reduziu significativamente a oferta de etanol.
- 1994; 1997; 1999: oficializou-se o comércio da gasolina E22, que, em três anos foi alterada para E24, fechando a década de 90 com o teor de álcool na gasolina em 26%.
- 2001: é promulgada a Lei 10.203/01, “que dispõe sobre a redução de emissão de poluentes por veículos automotores”, instituindo o limite de 24% de etanol na composição da gasolina.
- 2006: a ANP (Agência Nacional do Petróleo) diminui o limite em um ponto percentual, por meio da Resolução 35.
- 2015: gasolina E27 é legalmente fixada.
- 20??: teor do etanol na gasolina pode ser definido em 30%!
Pelo histórico, é possível perceber que as oscilações na proporção de etanol anidro na gasolina ao longo das últimas décadas foram motivadas por fatores diversos, mas a obrigação legal da mistura no Brasil representa um pioneirismo que surgiu pelo reconhecimento de sua importância e das vantagens que entrega.
Elevação da porcentagem de álcool na gasolina: há desvantagens?
Não é a primeira vez que surge polêmica quando vem à tona o assunto do aumento do teor de etanol na gasolina. Desde o anúncio do ministro do MME a respeito da possibilidade da gasolina E30 ser gradualmente distribuída pelo Brasil, as opiniões se dividiram. Há quem diga que o combustível diminui a eficiência dos automóveis e prejudica o funcionamento de determinados motores mais antigos e dos importados da indústria automotiva internacional.
No entanto, a experiência de 2015 mostrou que não é bem assim que funciona. Na época, também houve discussões com os mesmos argumentos, e não foi necessário renovar a frota de automóveis, abandonar os antigos nem abrir mão dos importados. Representantes dos setores automotivo, agrícola, sucroenergético e ambiental encontraram soluções que permitiram atingir os objetivos sem prejudicar o consumidor final.
Afinal, diminuir a quantidade de gasolina que circula, sua produção e sua importação é o grande foco. O petróleo, considerado o ouro negro na época da revolução industrial, corre risco de escassez com o avançar do século XXI, o que pode ser devastador para a mobilidade urbana, caso as cidades não estejam adaptadas ao uso de biocombustíveis como o etanol de cana. De toda forma, essa é apenas uma preocupação secundária, diante das vantagens que a ampliação do consumo de etanol anidro e hidratado tem potencial para oferecer a médio prazo. A seguir, elas serão apresentadas em mais detalhes.
Descarbonização, transição energética, independência energética e o uso do etanol de cana
Segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o Brasil é um dos países com menor intensidade de carbono na economia, algo que está diretamente relacionado com a produção de energia. Só o fato de nossa eletricidade ser majoritariamente de fontes renováveis já contribui para isso. No mesmo sentido, os esforços para descarbonizar os combustíveis, desde a década de 60, colocam o país entre os mais avançados na sustentabilidade de toda a cadeia produtiva, porque:
- a produção de cana-de-açúcar brasileira é muito sustentável, com práticas agrícolas que conservam o solo e conferem altas produtividades;
- a agroindústria basicamente se autossustenta, com técnicas para o máximo aproveitamento dos resíduos e potencial para, inclusive, gerar a energia limpa e renovável que mantém o funcionamento da própria usina;
- o setor automotivo tem tradição em promover o uso de biocombustíveis, criando soluções para os consumidores – como motores flex, políticas de competitividade do etanol ante a gasolina, entre outros – que viabilizam, aos poucos, a substituição dos combustíveis fósseis.
O gráfico a seguir, gerado pelo WRI (World Resources Institute) mostra a curva de evolução de emissões globais de poluentes (em GtCO2e – bilhões de toneladas métricas de CO2 equivalente), entre 1990 e 2019. A linha azul escura, mais acima, representa as emissões totais, a linha amarela se refere ao setor de energia, e a linha azul, no quadrante mais baixo, diz respeito à atividade agrícola.
A proposta de elevar o teor de etanol na gasolina não será aplicada sem muito estudo, a fim de não comprometer o consumidor e garantir que haja tecnologia suficiente para tornar a gasolina E30 viável. No entanto, seu potencial para a descarbonização é inegável, sendo a principal vantagem a possibilidade de atingir a meta de redução das emissões de GEE em 50% até 2030 e neutralizar o carbono emitido na atmosfera até 2050, compromisso firmado diante de muitas autoridades globais.
Limpar a mobilidade urbana e descarbonizar a frota por meio da canavicultura e dos biocombustíveis dela provenientes é uma sacada de mestre, diante do atual cenário de mudanças climáticas. De acordo com o IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change):
“Todos os modelos globais de alternativas para limitar o aquecimento global em 1,5 ºC (>50%) ou em 2,0 ºC (>67%) envolvem uma rápida, profunda e, em muitos casos, imediata redução das emissões de GEE em todos os setores. As estratégias de mitigação estruturadas para alcançar essas reduções incluem a transição de combustíveis fósseis sem CCS (Captura e Armazenamento de Carbono) para fontes de energia carbono zero ou muito baixo, tais como combustíveis renováveis” (tradução livre do relatório Climate change 2022: mitigation and climate change).
Quem disser que essa não é uma descrição perfeita das potencialidades do etanol brasileiro merece reler o trecho. Os esforços para aumentar a produção e o consumo do biocombustível, incluindo a proposta de aumento do teor do álcool na gasolina, estão muito bem alinhados ao conceito de transição energética do IPCC.
Uma estratégia que gera um ciclo de benefícios
Para tratar das vantagens de maneira mais ampla, podemos desenhar a cadeia de resultados positivos que o Brasil tem a possibilidade de gerar:
- a produção sustentável de cana-de-açúcar nas lavouras entrega uma matéria-prima de alta qualidade às usinas;
- essa cana com bom ATR conduz resultados de moagem elevados;
- o bom volume de caldo extraído possibilita mais eficiência na produção de etanol;
- o mix de produção de etanol anidro e etanol hidratado fica mais equilibrado, pelo incentivo ao consumo de ambos;
- a maior quantidade de oferta de biocombustíveis diminui a quantidade de CO2 emitido;
- o sistema de produção desse etanol, com energia limpa e aproveitamento de resíduos, evita ainda mais emissões;
- tamanha sustentabilidade coloca o Brasil à frente das soluções de combate às mudanças climáticas, com a agricultura canavieira como o ponto de partida.
Por último, mas não menos importante, essa autossuficiência no setor de biocombustíveis diminui a importância do petróleo e da gasolina, de maneira que o Brasil pode, enfim, alcançar a independência energética – ao menos em parte – ao alcançar a importante meta econômica de não depender de importações para fazer sua mobilidade funcionar plenamente.
Não para por aí: nem tudo é cana no Brasil
Respondendo à pergunta do título principal, sim, a cana-de-açúcar é o futuro, pelo menos no que tange à aceleração imediata da transição energética, afinal, é um sistema que já está funcionando, basta adaptar. Agora, é preciso abrir os olhos também para as outras opções de combustíveis limpos que saem diretamente das lavouras brasileiras:
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Biodiesel de soja
A soja aplicada ao biodiesel está dando o que falar e, inclusive, faz parte da proposta aqui discutida, que visa o aumento do teor de etanol na gasolina e o aumento do teor de biodiesel no diesel petrolífero. A queridinha do agronegócio agora tem uma nova potencialidade de peso, ajudando a cana-de-açúcar a construir um futuro livre de GEE.
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Etanol de milho
Claro que ele não podia faltar! O etanol de milho pode diminuir a pressão sobre a cana-de-açúcar, diante de uma eventual quebra de safra ou outros desafios que impeçam o setor sucroenergético de suprir o volume de etanol necessário para cobrir o consumo interno e exportar, ajudando também outros países em sua missão em prol da sustentabilidade.
O risco é de que a temperatura média global aumente 4 °C até o final deste século, inviabilizando a vida como a conhecemos hoje (o que pode acontecer, se não confiarmos na cana, na soja e no milho para sustentar a demanda por combustíveis). Essa temperatura já aumentou 0,5 °C nos últimos 100 anos, e os impactos disso já são sentidos em todo o mundo.
Por isso, é merecido encerrar este artigo com um viva à agricultura! Ela alimenta e ainda constrói bases sólidas para promover a qualidade de vida, sem que mudanças drásticas nos modos de viver da sociedade sejam necessárias.
A Syngenta está ao lado do produtor rural em todos os momentos, oferecendo as soluções necessárias para construirmos, juntos, um agro cada vez mais inovador, rentável e sustentável.
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